sábado, 23 de agosto de 2014

Os negros e os escravos no Paço Real da Ribeira de Muge – nos 500 anos da sua conclusão

A submissão de uns povos aos outros é uma constante na história. O comércio de escravos também. Apesar da escravatura já vir de povos longínquos (os romanos já a tinham, por exemplo), ficaram essencialmente na nossa memória os escravos negros, oriundos de áfrica. Segundo Magalhães (2003), os primeiros escravos com estra proveniência chegaram ao nosso país em 1444, durante o reinado de D. Afonso V. Cerca de cem anos depois, mais precisamente em 1551, existiam em Portugal 9950 escravos, cerca de 10% da população total.

Os escravos eram destinados essencialmente aos trabalhos pesados. As escravas entravam essencialmente pelos trabalhos domésticos. Com a sua chegada massiva ao território nacional, aumenta a emigração dos naturais, uma vez que não podiam competir com o seu trabalho (não remunerado). Foi contudo com a presença escrava que se impediu um colapso demográfico nesta época.

Representação dos escravos na vida doméstica, numa iluminura do livro de Horas de D. Manuel I, produzido na primeira metade do séc. XVI. Fonte: Matriz.net.


A presença de negros nesta zona da Ribeira de Muge, e no Paço Real da Ribeira de Muge, é inquestionável. É precisamente da sua presença que advém o topónimo “Paço dos Negros” – o paço real, para apoio às caçadas e montarias, que foi habitado por escravos negros. Evangelista (2011), alude a vários registos da presença destes negros (escravos ou não) neste local, a saber:

1. Em abril de 1511, na carta que Pedro Matela escreve a D. Manuel I sobre o andamento das obras do paço nas margens da Ribeira de Muge, menciona que estas poderiam ter um maior andamento caso fosse para ali enviado “uma dúzia de escravos”, que depois seriam novamente mandados para outro lado. Assim, importa vincar, como diz o autor, que a construção do paço se iniciou sem a presença de escravos. Matela refere ainda na sua carta uma “ruinosa venda de [doze] escravos que estavam em Almeirim” (Evangelista, 2009: 75).

2. Durante o período de construção do paço (1511 – 1514), Diogo Rodrigues, almoxarife das obras e depois do paço, recebeu “de escravos, 7 peças”, ou seja, sete escravos.

3. A 30 de junho de 1516 são enviados quatro escravos da Casa da Mina para aqui.

4. Em 1529, num documento da época, sabemos que viviam 18 escravos homens, com quatro mulheres e oito filhos, perfazendo um total de 30 cativos. Para além destes, é ainda aludido no documento Fernão Frade, que não seria escravo, sendo possivelmente negro, e que recebia 542 reais.

5. Através de uma carta, em 1550, a rainha D. Catarina ordena a entrega de numerosos bens ao almoxarife do paço (à época Estevão Peixoto) para sustento das suas cabras e vacas. Entre estes contavam-se cinco moios de trigo para sustento de quatro pastores e uma escrava “que lhe há-de amassar e lavar a roupa”.

6. Em Setembro de 1552 há o registo da compra de um vestido para a escrava Maria Preta por 2$112.

A miscigenação entre negros e brancos existiu neste local da Ribeira de Muge. Ainda hoje, apesar de já não existirem negros ou mulatos, existem as marcas genéticas que eles deixaram nas gentes daqui. Contudo, não sabemos se estes passaram a ser livres com a extinção da escravatura, com o marquês de Pombal no séc. XVIII, ou se com a alforria – que segundo Magalhães (1993), era comum ser dada aos escravos em testamento pelos seus senhores. Ou seriam ambas as situações? Na segunda década do séc. XVIII, um pouco a jusante do paço, na Várzea Redonda, morre subitamente um escravo, pelo que temos a certeza que nesta época ainda existia escravatura na Ribeira de Muge.
   
Bibliografia:
EVANGELISTA, Manuel (2011). Paço dos Negros da Ribeira de Muge: A Tacubis Romana. S/l: Edição do autor.

MAGALHÃES, Joaquim Romero (1993). “A Sociedade”, in MATTOSO, José (coord.), História de Portugal, 3.º Vol. S/l: Círculo de Leitores. (pp. 469-509)


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quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Leonarda Maria, uma proprietária na Ribeira de Muge da primeira metade do séc. XVIII

Como seria a Ribeira de Muge na primeira metade do séc. XVIII? Quantas pessoas aqui viveriam e em que condições? O que faziam? O fausto da presença da corte já se tinha perdido. Contudo, a coroa continuava a ser proprietária da Coutada da Ribeira de Muge, e o almoxarifado continuava a ter sede no Paço Real da Ribeira de Muge, agora chamado “Passos dos Negros”, apesar do almoxarife já não estar obrigado a residir no paço. Ao analisar os registos paroquiais da época encontramos algumas personalidades sucessivamente referidas, o que nos faz concluir que teriam aqui alguma importância. Hoje iremos deter-nos numa delas.
Moinho da Várzea Redonda, na atualidade. Leonarda Maria foi sua proprietária na primeira metade do séc. XVIII. 

Leonarda Maria é nomeada várias vezes entre 1713 e 1728, como sendo moradora ora na Várzea Redonda ora no Moinho da Várzea Redonda. É comum aparecer nos registos paroquiais a diferença entre uma coisa e outra. A primeira menção que temos conhecimento é o batismo de sua filha, Isabel, a 19 de agosto de 1712. Foram padrinhos Josefa Maria de Seixas e Paulo Soares da Mota, moradores na Vila de Almeirim e sendo ele almoxarife do Paço Real da Ribeira de Muge.

Em 29 de outubro de 1713 Leonarda Maria fica viúva. O seu marido, José Marques, morre com todos os sacramentos e é sepultado no canto nascente do altar da Igreja Paroquial de Santo António da Raposa. Deixa um testamento onde lega à sua mulher a Ponte Velha. A cinco de maio do ano seguinte é batizado outro filho de ambos, Manuel, sendo padrinhos Manuel Lopes e Maria Nunes. Sendo os batismos feitos em crianças, podemos supor que Leonarda Maria seria ainda uma mulher nova e que ficou viúva relativamente jovem.

De 22 de agosto de 1716 temos conhecimento de uma provisão, onde Leonarda Maria pede para cultivar umas bicadas de terreno junto a um moinho que possuía na Ribeira de Muge. É invocado nesta que tal coisa era prática pelos donos dos outros moinhos vizinhos. Não sabemos ao certo a que moinho se referia a dita provisão, atendendo a que Leonarda Maria possuía dois moinhos (o da Várzea Redonda e o da Ponte Velha). Para além destes, entre o “Passo dos Negros” e a Raposa (sede paroquial), existiam à época os moinhos de Paulo Soares da Mota, do Pinheiro, da Parreira e da Raposa.

Data de 31 de maio de 1718 uma escritura de emprazamento onde Leonarda Maria apresenta um pedido à coroa para renovação do aforamento do Moinho da Ponte Velha. Seria possivelmente esta situação despoletada pela morte do seu marido, José Marques, cinco anos antes? Temos de ter presente que os aforamentos se faziam em três vidas, renováveis. Seria a de José Marques a terceira? É referido que o aforamento, em três vidas, contaria como sendo Leonarda Maria a primeira. Esta faz ainda um pedido para lhe ser baixado o foro (15 alqueires de trigo e 15 alqueires de cevada), pois o moinho, com três casais de mós, encontrava-se degradado.

No ano seguinte, morre um escravo que Leonarda Maria possuía – Pedro Tinoco, de morte súbita. É sepultado no corredor da igreja paroquial. Dos anos seguintes, temos conhecimento de quatro batismos em que Leonarda Maria é madrinha, a saber:

- Mariana, filha de Diogo Vieira e Maria Nunes, moradores no Moinho da Ponte Velha, a 14 de janeiro de 1720.
- Leonarda, filha de Pedro Fernandes e Josefa Maria, moradores no Moinho da Várzea Redonda, a 12 de janeiro de 1721. Foi madrinha com João Luís.
- Antónia, filha de Pedro Fernandes e de Josefa Maria, moradores na Várzea Redonda, a 15 de novembro de 1722. Foi madrinha com João Vaz.
- Ana, filha de Domingos Martins e Maria da Silva, moradores no Moinho da Várzea Redonda, a 26 de julho de 1723. Foi madrinha com o seu filho, José Marques.

A 24 de julho de 1727, morre Leonarda Maria, na Várzea Redonda. É sepultada no n.º 7 da Igreja Paroquial de Santo António da Raposa. No ano seguinte casarão dois dos seus filhos. Isabel Maria (a ser a mesma Isabel que é batizada em 1712, teria cerca de 17 anos), a 1 de julho, com António Costa, de Alpiarça, assim como as testemunhas do casamento. A 24 de agosto casa José Marques, com Tomásia Dias (de Torres Novas). São testemunhas deste casamento Diogo Vieira (morador na Raposa) e Luís Dias (morador na Várzea Redonda). Estes dois estabeleceram relações de algum modo com a família de Leonarda Maria, tendo em conta que viveram nas suas propriedades. Desconhecemos contudo os vínculos que lhe tinham.

Por fim, podemos inquirir-nos: como se pode inserir Leonarda Maria na sociedade do séc. XVIII? Temos evidências bastantes para concluir que não era uma simples mulher camponesa. Contudo, cremos ser excessivo poder considera-la uma pequena fidalga ou até burguesa (este seria o caso dos Soares da Mota, que viviam na Vila de Almeirim, e não no meio da charneca).

Cremos ser possível que Leonarda Maria seria ao século XVIII aquilo que no século XX se chamou “uma lavradora”. O seu marido fez testamento, o que não era muito comum à época, segundo os registos paroquiais. Trazia aforadas duas propriedades, nas quais viviam várias famílias. Com efeito, entre 1717 e 1727 há nos registos paroquiais três agregados diferentes no Moinho da Ponte Velha e nove no Moinho da Várzea Redonda. Para além disto, temos ainda de ter presente que Leonarda Maria é chamada a ser madrinha de quatro crianças de pessoas que viviam nas suas propriedades.

Por outro lado, e tendo presente que Leonarda Maria terá ficado viúva relativamente nova (tinha filhos que ainda nem sequer eram batizados), podemos perguntar-nos a razão pela qual não terá voltado a casar. Com efeito, é comum encontrarmos registos de viúvos que voltam a casar. Contudo, Leonarda Maria não o faz. Será que ao casar esta perderia direito às propriedades que tinha, passado estas para alçada do seu marido?

Fontes documentais e bibliográficas:
(1706-1741). Livro dos defuntos, dos baptizados e dos casados – Raposa (Sto. António).
(1716). “Leonarda Maria, Provisão”, Chancelaria de D. João V, livro 46, folhas 318v a 319v.
(1717). “Leonarda Maria, Carta de Emprazamento”, Chancelaria de D. João V, livro ??, folhas 347 e 347v.

EVANGELISTA, Manuel (2011). Paço dos Negros da Ribeira de Muge – A Tacubis Romana. S/l: Ed. de autor.