Na Paróquia de Santo António da Raposa,
cujo primeiro livro de assentos paroquiais media o período de 1706-1741,
aparece como madrinha de batismo quatro vezes Nossa Senhora do Rosário (num
total de 289 batismos registados). Contudo, antes de tentarmos perceber esta
devoção das gentes que aqui viviam, há que tentar perceber melhor o culto
mariano no geral e a Nossa Senhora do Rosário em particular naquela época.
Nossa Senhora do Rosário – Imagem na Igreja de S.
Domingos, Lisboa
Devemos
ter presente que o Convento da Serra, que existiu na Paróquia de Santo António
da Raposa, era habitado por frades dominicanos (ver aqui)
Tendo como ponto de partida um artigo de
Carlos Alberto Ferreira Almeida, intitulado “O
Culto a Nossa Senhora, no Porto, na época moderna”, podemos melhor perceber a devoção mariana neste
hiato temporal. Com efeito, o culto da Mãe de Cristo acentuou-se a partir do
final da Idade Média, deixando a designação de “Santa Maria” para “Nossa
Senhora”, assumindo nesta última forma as mais variadas causas, conforme as
invocações, substituindo os santos patronos dessa mesma causa (ex: Nossa
Senhora do Leite substitui S. Mamede para a amamentação, Nossa Senhora da Saúde
substitui S. Roque e S. Sebastião para a peste, Nossa Senhora da Ajuda substitui
S. Pedro para as comunidades piscatórias, Nossa Senhora da Vitória substitui S.
Jorge para as causas militares). Contudo, num pequeno espaço podia existir mais
que um culto a Nossa Senhora, com invocações diferentes. Por exemplo, na
Paróquia de Campanhã, segundo as Informações
Paroquiais de 1758, existiam seis capelas dedicadas a Nossa Senhora, sob a
invocação de Nossa Senhora da Graça, da Vida, do Rosário, da Conceição, do
Pilar e dos Anjos.
O
culto a Nossa Senhora do Rosário, do Carmo, da Silva e da Boa-Morte vêm
substituir o patronato de S. Miguel na defesa-guarda dos túmulos e almas. Crê-se
que Nossa Senhora assiste aos julgamentos dos seus devotos, intercedendo pelos
mesmos, colocando a sua touca ou rosários no prato da balança dos méritos. É
durante a época moderna que se origina o hábito dos mortos levarem um rosário
para a sepultura e que este passe a ser recitado nos velórios. Não devemos
esquecer que, além do apadrinhamento de Nossa Senhora do Rosário patente nos
registos paroquiais de Santo António da Raposa, foi ainda encontrada no espaço
do paço, segundo Evangelista (2015) uma medalha de Nossa Senhora da Boa Morte,
com a data de 1732 gravada, o que atesta a devoção neste local a Nossa Senhora
sob a causa da morte e julgamento no além.
Medalha de
Nossa Senhora da Boa Morte, encontrada no Paço Real da Ribeira de Muge.
Foto de Manuel Evangelista.
Segundo
Almeida (1979), torna-se prática ao longo dos séculos XVII e XVIII, na
configuração das igrejas, serem dados os dois altares laterais ao altar-mor (os
com mais destaque na igreja) a Cristo Cruxificado (por norma à direita) e a
Nossa Senhora, sendo mais comum nas invocações de Nossa Senhora Dolorosa e
Nossa Senhora do Rosário. Na Igreja Paroquial de Santo António da Raposa, e
apesar da sua diminuta dimensão, podemos constatar que apesar de não existirem
altares laterais, há duas bases para santos que ladeiam o altar principal.
Enquanto que Cristo Cruxificado está, neste caso, no altar principal, com o
sacrário. No lado encontramos Santo António (Padroeiro da igreja e da Paróquia)
e no lado esquerdo Nossa Senhora de Fátima. Teria aqui estado, antes dos
fenómenos da Cova da Iria, Nossa Senhora do Rosário?
Altar Principal
da Igreja Paroquial de Santo António da Raposa.
Vê-se, a ladear o mesmo, as imagens de Nossa Senhora de
Fátima e de Santo António.
Como
já referimos, os batismos apadrinhados por Nossa Senhora do Rosário são no
total quatro. O primeiro data de 11 de março de 1728, de um menino chamado
Manuel, filho de Lúcia Maria (moça solteira), moradora no Casal do Moinho de
Vale Flores (já na Paróquia do Espírito Santo de Vale Cavalos).
A
19 de novembro de 1732 volta a ser invocada Nossa Senhora do Rosário para
apadrinhar José, o segundo e último filho de Francisco Oliveira e Domingas
Dias, moradores em Pero Pez. Esta criança morrerá menos de um ano depois a 30
de setembro de 1733. Em 2 de fevereiro de 1733, Nossa Senhora do Rosário é
madrinha de batismo de Anastácio, também segundo filho (em seis) de José
Gonçalves e Josefa Maria, moradores no Passo
dos Negros. Para além de serem estas duas crianças segundos filhos (ou pelo
menos os segundos de que há assento paroquial), foi ainda mencionado no seu
registo que o apadrinhamento de Nossa Senhora do Rosário de deve à devoção dos
pais.
O
quarto e último assento, datado de 5 de fevereiro de 1737, menciona que Nossa
Senhora do Rosário apadrinha o batismo de João, terceiro filho (de quatro) de
Inácio Santiago e Josefa Maria, moradores nos Paços dos Negros. Esta criança irá morrer a 8 de agosto do mesmo
ano, cinco meses após o batismo.
Deixando
de parte agora o caminho dos factos, poderemos entrar em algumas conjeturas e
levantar interrogações pertinentes, a nosso ver, para o culto de Nossa Senhora
do Rosário pelas gentes da Ribeira de Muge. Assim:
-
Apesar da devoção, seria este apadrinhamento “santo” um meio de procurar o
auxílio divino para a criança? Com efeito duas das crianças morrem pouco tempo
depois do batismo. Estariam já aquando do batismo doentes e prever-se uma morte
no médio prazo? Seriam os conhecimentos médicos suficientes já para prolongar
por meses a vida de um recém-nascido? Apesar não existir registos de óbitos dos
outros dois, podemos considerar que poderiam melhor da maleita e escapar, ou o
seu sepultamento ter sido noutra paróquia.
-
Por outro lado, a invocação de Nossa Senhora do Rosário como madrinha de
batismo pode ser o meio de obter graças divinas para a criança que está a ser
limpa do pecado original, quando a sua condição de nascimento não é a mais
favorável? Com efeito, a primeira criança foi concebida fora do casamento,
enquanto que as restantes três não são primogénitos (tanto o filho de Francisco
Oliveira como o de José Gonçalves tinham uma irmã mais velha, o de Inácio
Santiago tinha uma irmã e um irmão).
-
Porquê Nossa Senhora do Rosário? Além dos motivos aludidos anteriormente, da
sua grande devoção nesta época, como também já foi mencionado atrás, existia um
convento na paróquia, o Convento Dominicano de Nossa Senhora da Serra.
Encontramos em Lisboa, precisamente na Igreja de S. Domingos (integrante do
antigo convento dominicano da capital) uma imagem da Virgem do Rosário. Sabemos
que na Igreja de Santo António da Raposa existiu uma imagem de Nossa Senhora do
Rosário (roubada aquando de um assalto em fevereiro de 2002). Terá ela vindo no
Convento da Serra? Terão os frades influenciado este culto nas populações?
Imagem de Nossa
Senhora do Rosário na Igreja de Santo António da Raposa
Fotografia recolhida por Manuel Evangelista
-
Por fim, Almeida (1979), afirma que na Igreja da Foz do Douro (Porto), havia
dois altares à Virgem do Rosário, cada um com a sua própria confraria. A
celebração de uma festividade era a 15 de agosto, e a segunda no primeiro
domingo de outubro. Esta última, segundo as Informações
Paroquiais, era a festividade “dos pretos”. Seria este um culto do povo
negro, que bem sabemos ter aqui uma forte presença.
Bibliografia
e outras fontes:
(1706-1741). Livro dos defuntos, dos baptizados e dos casados – Raposa (Sto.
António).
ALMEIDA, Calos Alberto Ferreira (1979). “O Culto a Nossa
Senhora, no Porto, na época moderna”, Revista
de História, vol. 2. Porto: Centro de História da Universidade do Porto.
EVANGELISTA,
Manuel (2015). A Capela de S. João
Baptista. S/l: ed. de autor.